Prof. Leandro Karnal
A sabedoria do mais
influente legislador do Ocidente, Moisés, sintetizou uma concepção de
mundo em Dez Mandamentos. Como bom educador, o ex-príncipe do Egito
sabia que longos códigos são de difícil acesso. Curioso notar que
constituições muito breves, como a norte-americana, passam dos dois
séculos e constituições prolixas, como todas as brasileiras , caducam em
prazos muito curtos.
Inspirados neste exemplo, elaboramos os Dez
Mandamentos do Professor. Estes dez mandamentos são fruto de uma
experiência particular e não se pretendem eternos ou válidos em qualquer
ocasião. Gostaria apenas de fornecer a colegas, como você leitor, uma
reflexão particular, que possa ser aprofundada, reinterpretada ou
rejeitada de acordo com a sua experiência.
O que me levou a pensar
nestes princípios é a mesma angústia que assola qualquer educador: como
ser um bom profissional, ensinar, transformar meu aluno e fazer parte
desta transformação? Como superar o tédio dos meus alunos, a
indisciplina, a irrelevância de algumas coisas que faço e meu próprio
cansaço? Como não considerar a sala um fardo e o relógio um inimigo?
Como parar de achar que só vivo a partir do fim-de-semana? A partir
destes questionamentos, você está permanentemente convidado a adensar ou
criticar, fazer seus outros dez ou sintetizar a dois ou três, pois,
quem acha que pode melhorar a aula que dá , já começou a viver educação.
E quem não acha que pode? Bem, deixa para lá! Ensinar não é a única
profissão do mundo…
-PRIMEIRO MANDAMENTO: CORTAR O PROGRAMA!
Quase
todas as disciplinas foram perdendo aulas ao longo das décadas
anteriores. Não obstante, os programas nem sempre acompanharam estes
cortes. Pergunte-se: isto é realmente importante? Este conteúdo é
essencial? Não seria melhor aprofundar mais tais tópicos e menos outros?
Se a justificativa é a pressão do vestibular, ela não pode ocupar 11
anos de Ensino Médio e Fundamental. Se a justificativa é uma regra da
escola ou um coordenador obsessivo, lembre-se: o Diário de Classe sempre
foi o documento por excelência do estelionato. A coragem da grande
tesoura é essencial. Dar tudo equivale a dar nada. Ensinar a pensar não
implica esgotar o conhecimento humano.
-SEGUNDO MANDAMENTO: SEMPRE PARTIR DO ALUNO!
Chega
de lamentar o aluno que não temos! Chega de lamentar que eles não lêem,
a partir de uma nebulosa memória do aluno perfeito que teríamos sido
(nebulosa e duvidosa). Este é o meu aluno real. Se, para ele, Paulo
Coelho é superior a Machado de Assis e baile Funk é superior a Mozart,
eu preciso saber desta realidade para transformá-la. Se ele é analfabeto
devo começar a alfabetizá-lo. Se ele está no Ensino Médio e ainda não
domina soma de frações de denominadores diferentes devo estar atento:
esta é minha realidade. A partir do zero eu posso sonhar com o cinco ou
seis. A partir do imaginário da perfeição é difícil produzir algo. A
Utopia, desde Platão e Thomas Morus, tem a finalidade de transformar o
real, nunca de impossibilitá-lo.
-TERCEIRO MANDAMENTO: PERDER O FETICHE DO TEXTO!
Em
todas as áreas, em especial nas humanas, os alunos são instigados quase
que exclusivamente ao texto. Num mundo imerso na imagem e dominado por
sons e cores, tornamos o texto central na sala de aula. Devemos estar
atentos ao uso de imagens, música, sensorialidades variadas. O texto é
muito importante, nunca deve ser abandonado. Porém, se o objetivo é
fazer pensar, o texto é apenas um instrumento deste objetivo maior. Há
pessoas que pensam e nunca leram Camões e há quem saiba Os Lusíadas de
cor e não pense…Lembre-se de que há outros instrumentos. A sedução das
imagens deve ser uma alavanca a nosso favor, nunca contra. Usar filmes,
propagandas, caricaturas, desenhos, mapas: tudo pode servir ao único
grande objetivo da escola: ajudar a ler o mundo, não apenas a ler
letras.
-QUARTO MANDAMENTO: POSSIBILITAR O CAOS CRIATIVO.
Fomos
educados a um ideal de ordem com carteiras emparelhadas e, mesmo no
fundo do nosso inconsciente, este ideal persiste. Qual professor já não
teve o pesadelo de perder o controle total de uma sala, especialmente na
noite mal dormida que antecede o primeiro dia de aula? Devemos estar
preparados para o caos criador e para o lúdico. Alunos andando pela
sala, trocando fragmentos de textos ou imagens dados pelo professor,
discussões, encenações, o professor recitando uma poesia ou mandando
realizar um desenho: tudo pode ser canal deste lúdico que detona o caos
criativo. Surpreenda seus alunos com uma encenação, com um silêncio, com
um grito, com uma máscara. Uma sala pode estar em ordem e ninguém
aprendendo e pode estar com muitas vozes e criando ambiente de
aprendizado. Lembre-se o silêncio absoluto é mais importante para nós do
que para os alunos. É difícil vencer a resistência dos colegas e da
própria escola a isto. Lógico que o silêncio também deve ser um espaço
de reflexão, mas é possível pensar que há valor num solo gentil de
flauta, numa pausa ou num toque retumbante de 200 instrumentos.
-QUINTO MANDAMENTO: INTERDISCIPLINAR!
Assim
mesmo, entendido o princípio como um verbo, como uma ação deliberada. É
fundamental fazer trabalhos com todas as áreas. Elaborar temas
transversais como o MEC pede e, ao mesmo tempo, libertar o aluno da
idéia didática das gavetas de conhecimento. Não apenas áreas afins (como
História e Geografia) mas também Literatura e Educação Física,
Matemática e Artes, Química e Filosofia. É preciso restaurar o sentido
original de conhecimento, que nasceu único e foi sendo fragmentado até
perder a noção de todo. O profissional do futuro é muito mais holístico
do que nós temos sido até hoje.
-SEXTO MANDAMENTO: PROBLEMATIZAR O CONHECIMENTO.
Oferecer
ao aluno o cerne da ciência e da arte: o problema. Não o problema
artificial clássico na área de exatas, mas os problemas que geraram a
inquietude que produziu este mesmo conhecimento A chama que vivou os
cientistas e artistas é transmitida como um monumento inerte e
petrificado. Mostrem as incoerências, as dúvidas, as questões
estruturais de cada matéria. Mostrem textos opostos, visões distintas,
críticas de um autor ao outro. Nunca fazer um trabalho como: “O
Feudalismo” ou “O Relevo do Amapá”; mas problemas para serem resolvidos.
Todo animal (e, por extensão, o aluno) é curioso. Porém, é difícil ser
curioso com o que está pronto. Sejamos francos: se é tedioso ler um
trabalho destes, qual terá sido o tédio em fazê-lo?
-SÉTIMO MANDAMENTO: VARIAR AVALIAÇÕES.
Provas
escritas são válidas, como a vitamina A é válida para o corpo humano.
Porém, avaliações variadas ampliam a chance de explorar outros tipos de
inteligência na sala. As outras avaliações não devem ser vistas como um
trabalhinho para dar nota e ajudar na prova, mas como um processo
orgânico de diminuir um pouco a eterna subjetividade da avaliação.
-OITAVO MANDAMENTO: USAR O MUNDO NA SALA DE AULA!
O
mundo está permeado pela televisão, pela Internet, pelos jornais, pelas
revistas, pelas músicas de sucesso. A escola e a sala de aula precisam
dialogar com este mundo. Os alunos em geral não gostam do espaço da sala
porque ele tem muito de artificial, de deslocado, de fora do seu
interesse. Usar o mundo da comunicação contemporânea não significa
repetir o mundo da comunicação contemporânea; mas estabelecer um gancho
com a percepção do meu aluno.
-NONO MANDAMENTO: ANALISAR-SE PESSOALMENTE!
A
primeira pessoa que deve responder aos questionamentos da educação é o
professor. Somos nós que devemos saber qual o motivo de dar tal coisa,
qual a relevância, qual a utilidade de tal leitura. O professor é o
primeiro que deve saber como tal ciência transformou a sua vida. Isto
implica fazer toda espécie de questão, mesmo as incômodas. Se eu não
fico lendo tal autor por prazer e nem o levo aos meus passeios como
posso exigir que um jovem ou uma criança o façam? Qual a coerência do
meu trabalho? Minha irritação com a turma indisciplinada é uma espécie
de raiva por saber que eles estão certos? Minha formação permanente me
indica novos caminhos? Estou repetindo fórmulas que deram certo quando
eu era aluno há 20 ou mais anos? É necessário um exercício
analítico-crítico muito denso para que eu enfrente o mais duro olhar do
planeta: o do meu aluno.
-DÉCIMO MANDAMENTO: SER PACIENTE!
Hoje
eu acho que ser paciente é a maior virtude do professor. Não a clássica
paciência de não esganar um adolescente numa última aula de
sexta-feira, mas a paciência de saber que, como dizia Rubem Alves,
plantamos carvalhos e não eucaliptos. Nossa tarefa é constante, difícil,
com resultados pouco visíveis a médio prazo. Porém, se você está lendo
este texto, lembre-se: houve uma professora ou um professor que o
alfabetizou, que pegou na sua mão e ensinou, dezenas de vezes, a fazer a
simples curva da letra O. Graças a estas paciências, somos o que somos.
O modelo da paciência pedagógica é a recomendação materna para escovar
os dentes: foi repetida quatro vezes ao dia, durante mais de uma década,
com erros diários e recaídas diárias. As mães poderiam dizer: já que
vocês não querem nada com o que é melhor para vocês, permaneçam do jeito
que estão que eu não vou mais gritar sobre isto (típica frase de sala
de aula…) . Sem estas paciências, seríamos analfabetos e banguelas. Não
devamos oferecer menos ao nosso aluno, especialmente ao aluno que não
merece nem quer esta paciência este é o que necessita urgentemente dela.
O doente precisa do médico, não o sadio. O aluno-problema precisa de
nós, não o brilhante e limpo discípulo da primeira carteira.
Há
alguns anos eu falava de alguns destes princípios e uma senhora
redargüiu dizendo que ela fazia tudo isto e muito mais e, mesmo assim,
os alunos estavam cada vez piores e com menos resultados. Olhei para
esta professora e senti nela o reflexo de meus cansaços também. A única
coisa que me ocorreu lembrar é uma alegoria, com a qual encerro este
texto:
Na nossa cultura há um modelo de professor: Jesus. A
maioria absoluta das pessoas no Brasil é cristã, mas a alegoria serve
também para os que não são. Tomemos a história de Jesus independente da
nossa orientação religiosa. Comparemos: Jesus teve 12 alunos escolhidos
por ele! Eu tenho 30, 60, 100, escolhidos por um rigoroso processo de
seleção: inscreveu, pagou, entrou. Jesus teve alunos em tempo integral
por três anos: eu tenho por duas ou quatro aulas semanais, por um
período mais curto. Os alunos de Jesus deixaram tudo para segui-lo, o
meu não deixa quase nada e não quer acompanhar nem meu pensamento,
quanto mais minhas propostas existenciais. Fiel aos novo ditames do MEC,
Jesus deu um curso superior em três anos. Para quem acredita, Ele fazia
milagres, coisa que nós certamente não fazemos naquele sentido. A aula,
de Jesus, assim, era reforçada por work-shops. A auto estima e a
confiança de Jesus era enorme: o cara simplesmente dizia que era o Filho
de Deus, que ressuscitava mortos, andava sobre as águas, passava
quarenta dias sem comer e não tinha medo de ninguém. Eu não tenho esta
convicção. Melhor: as aulas eram ao ar livre, sem coordenação, sem
direção, sem colegas e os pais dos alunos não apareciam para reclamar!
Bem, após 3 anos de curso intenso com todos estes reforços, chegou a
prova final. Na agonia do Horto os três melhores alunos dormiram, quando
o Mestre estava chorando sangue. O tesoureiro da turma denunciou o
professor à Delegacia de Educação por 30 moedas. O líder da classe,
Pedro, negou que tivesse tido aula por três vezes diante da supervisora
de ensino: nunca vi este cara antes… Outros nove fugiram sem dar notícia
e não compareceram à prova final: o Calvário. O mais novo e bobinho,
João, foi até lá, mas não fez nada para impedir que os guardas matassem o
professor. Se considerarmos João , com boa vontade, o único aprovado,
teremos uma média de êxito de 8.33%, baixa demais para os padrões das
Delegacias de Ensino e alvo de demissão sumária por justa causa. O
professor morreu e, para quem acredita, voltou para uma recuperação de
férias. Reuniu os reprovados e disse: mais uma chance. Um dos alunos ,
Tomé, pediu para colocar o dedo no diploma do professor para ver se era
de verdade. Primeira pergunta do líder da turma, Pedro: “Senhor, é agora
que vais restaurar o reino de Israel?” Ou seja, o melhor aluno não
aprendeu nada! Esta pergunta mostra o oposto da aula dada, pois ele
achou que o curso tinha sido sobre política e, na verdade, tinha sido
sobre Teologia… Objetivos não atingidos: 100% ! Novos milagres, mais 40
dias defeedback, apostilas, recuperação, reforço de férias. Final de
curso pirotécnico: subiu ao céu entre nuvens e anjos
assistentes-pedagógicos disseram que o mestre tinha ido para a sala dos
professores eterna e não mais voltaria. O curso estava encerrado, todas
as lições tinham sido dadas para aquela nata de 11 homens. O que eles
fizeram? Foram se esconder numa casa, todos apavorados. O mestre mandou
um módulo auto-instrucional de reforço, o Espírito Santo, um
anabolizante. Só então, com uma força externa, eles começaram a
entender, e finalmente tiveram aquela famosa reação bovina: HUMMMM…
Bem, eu disse à professora que me questionava: se Jesus teve tantos
insucessos apesar de condições tão boas, a senhora quer ser mais do que
Ele? Hoje eu diria para qualquer profissional: faça o máximo, mas apenas
o máximo, e deixem o resto por conta do resto. A frase parece autista,
mas é muito importante. Nós temos um limite: a vontade do aluno, da
instituição e da sociedade como um todo. Não transformamos nada
sozinhos, mas transformamos. O primeiro passo é a vontade. O segundo
começa daqui a pouco, naquela sala difícil, com aquela turma sentada no
fundo e naqueles angustiantes dez minutos que você vai levar para
conseguir fazer a chamada… Vamos lá?
.
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Desistir de um aluno
Uma vez escrevi para um congresso sobre a aproximação entre o método materno e o pedagógico. O texto que fiz era o seguinte:
Hoje, eu acho que ser paciente é a maior virtude do professor. Não a clássica paciência de não esganar um adolescente numa última aula de sexta-feira, mas a paciência de saber que, como diz Rubem Alves, plantamos carvalhos e não eucaliptos. Nossa tarefa é constante, difícil, com resultados pouco visíveis a médio prazo. Porém, se você está lendo este texto, lembre-se: houve uma professora ou um professor que o alfabetizou, que pegou na sua mão e ensinou, dezenas de vezes, a fazer a simples curva da letra O. Graças a essas paciências, somos o que somos. O modelo da paciência pedagógica é a recomendação materna para escovar os dentes: foi repetida quatro vezes ao dia, durante mais de uma década, com erros diários e recaídas diárias. As mães poderiam dizer: já que vocês não querem nada com o que é melhor para vocês, permaneçam do jeito que estão que eu não vou mais gritar sobre isso (típica frase de sala de aula...). sem essas paciências, seríamos analfabetos e banguelas. Não devemos oferecer ao nosso aluno, especialmente ao aluno que não merece e nem quer esta paciência – este é o que necessita urgentemente dela. Doente precisa do médico, não o sadio. O aluno-problema precisa de nós, não o brilhante e limpo discípulo da primeira carteira.
É um erro que já cometi muito. Um aluno não me ouve. Não faz nada do que eu peço. Diante de qualquer tentativa, sutil ou forte, ele reage com indiferença absoluta. Eu insisto, chamo para conversar, estimulo, repreendo. Nada. Absolutamente nada. Todos os colegas dizem o mesmo: “esse aí não quer nada com nada”.
Parece que o aluno, o Dna, os colegas, o sistema e tudo o mais indicam que devemos desistir. Afinal, o que eu posso fazer com apenas aquele tempinho e tendo tantos estudantes para atender? Nesse momento, queria dizer para mim e ler muitas vezes para mim e aproveitar para dizer a vocês: não desistam. Desistir de um aluno e declarar que nada mais pode ser feito é um fracasso doloroso para todos, para o professor inclusive. Acho que há momento para desligar as máquinas num centro de tratamento intensivo. Acho que há momentos em que a doença vence. Mas gostaria, na minha vida profissional, que eles fossem escassos. É a vitória da morte, num hospital ou numa sala de aula.
O mais dramático é que, por vezes, é o aluno que nos pede para desistir. Ouvi tanto isso deles. “Não adianta, professor. Eu não quero aprender...” encare sempre esse desafio. Quem não quer é o que mais precisa. Volto para a escova de dentes...
Leandro Karnal é professor, historiador, graduado em História pela UNISINOS e doutor pela USP. Atualmente leciona na UNICAMP. Será palestrante no Encontro Nacional de Mediação de Conflitos – CEAT/2013, em Lajeado/RS.
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